domingo, 1 de julho de 2012

Soneto Científico a Fingir 
   Ana Luísa Amaral

Dar o mote ao amor. Glosar o tema 
tantas vezes que assuste o pensamento. 
Se for antigo, seja. Mas é belo 
e como a arte: nem útil nem moral. 

Que me interessa que seja por soneto 
em vez de verso ou linha desvastada? 
O soneto é antigo? Pois que seja: 
também o mundo é e ainda existe. 

Só não vejo vantagens pela rima. 
Dir-me-ão que é limite: deixa ser. 
Se me dobro demais por ser mulher
[esta rimou, mas foi só por acaso] 

Se me dobro demais, dizia eu, 
não consigo falar-me como devo, 
ou seja, na mentira que é o verso, 
ou seja, na mentira do que mostro.

E se é soneto coxo, não faz mal. 
E se não tem tercetos, paciência: 
dar o mote ao amor, glosar o tema, 
e depois desviar. Isso é ciência!

Joaquim Pessoa

[Quero-te para além das coisas justas]


Quero-te para além das coisas justas
... e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.


António Gedeão

Impressão Digital

Os meus olhos são uns olhos, 
e é com esses olhos uns 
que eu vejo no mundo escolhos, 
onde outros, com outros olhos, 
nao vêem escolhos nenhuns. 

Quem diz escolhos, diz flores! 
De tudo o mesmo se diz! 
Onde uns vêem luto e dores, 
uns outros descobrem cores 
do mais formoso matiz. 

Pelas ruas e estradas 
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas, 
mas outros gnomos e fadas 
num halo resplandecente!! 

Inútil seguir vizinhos, 
querer ser depois ou ser antes. 
Cada um é seus caminhos! 
Onde Sancho vê moinhos, 
D.Quixote vê gigantes. 

Vê moinhos? São moinhos! 
Vê gigantes? São gigantes!  

Chacal


uma gargalhada num canto da sala
nervosa
de unhas roídas
estalou e rolou
nos aposentos
como se a alegria
tivesse sido convidada
mas não foi. 

é que houve um malentendido

Cecília Meireles

Canção Excêntrica
Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
projeto-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
— saudosa do que não faço,
— do que faço, arrependida. 

Cacaso

Jura

minha boca sopra no vento: eu te
amo eu te amo

uma navalha corta em dois meu coração 

Carlos Queiroz

Quando se veste a roupa do avesso

Por tudo o que me deste:
– Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
– Obrigado! Obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
– Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: – Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!